Mais uma vez


Este pequeno texto foi publicado no livro Contos Cotidianos (Editora Regência, 2011) 



Mais uma vez

…abriu os olhos sentindo que acordar era como renascer a cada dia; espreguiçou-se redivivo, ouvindo pela primeira vez o barulho do mundo. E esboçou um sorriso; um sorriso vago, simples e sincero, inocente e tranquilo... até que um pensamento lhe veio à cabeça e toda a alegria pura recolheu-se no íntimo de seu coração, sem desaparecer nem desistir, apenas adiando – mais uma vez – sua vitória sobre os problemas e outras banalidades que insistiam em corroer seu ânimo.
A vista, ainda embaçada, mal divisava a mesinha de cabeceira, movimentos rudes buscavam alcançar o despertador que só tocaria dali a sete minutos e, como que movido por uma força maior que ele, que o regia e conduzia seu corpo, Paulo apoiou os pés no chão e empurrou o mundo, erguendo-se para mais um dia. Aos poucos, a mobília começou a existir ao seu redor, e depois, a cada passo automático que seu corpo dava, as paredes do quarto surgiam à sua volta, e a realidade sufocou qualquer resquício de sonho que ainda restasse no fundo de sua mente.
E outro dia comum tomou forma e encheu sua vida, abafando as alegrias e as cores com o cinza da realidade; sua realidade seca como o ar que vinha da rua, dura como as paredes que o cercavam impondo os limites do corpo - limites que não existem nos sonhos. Seus sonhos, sua vida, suas esperanças e vontades não-ditas jaziam nos cantos do que lhe restava de alma, eram, talvez, sua própria alma abandonada pelos cantos de si como roupas espalhadas pelo chão do quarto, caídas por trás de algum móvel para nunca mais...
Tal era a força da rotina, que já não dependia de Paulo atravessar o quarto para chegar ao banheiro; seu corpo sabia o trajeto e o conduzia pelo caminho, permitindo, assim, ainda que por um momento – um breve momento – que seus olhos piscassem um pouco mais devagar do que o normal e, no cair das pálpebras, instantes de sonho atravessavam sua mente, dividindo a manhã de Paulo entre o frio do chão sob seus pés e o calor das cobertas que o aguardavam para mais uma breve noite de sonhos. Mas, o calor das cobertas, o conforto da cama e o desapressado relógio do sono que tanto agradava Paulo com seus ponteiros difusos, eram, agora, apenas a vaga lembrança de uma vontade adiada.
Com as costas voltadas para o espelho, as pernas tocando as bordas do sanitário e a mão direira espalmada na parede à sua frente, Paulo buscou com o olhar, quase instintivamente, os ponteiros do relógio de pulso. Dependia das horas, procurava o tempo em seu relógio e sentia que precisava dos ponteiros para saber o que sentir, aonde ir e o que querer da vida; dependia do relógio para distinguir o possível do necessário, o trabalho do lazer, a rua das cobertas, a realidade do sonho... não! não o sonho; o sonho era apenas a vaga lembrança de suas vontades adiadas por mais um dia, talvez para nunca mais...
Mas, contrariando o “mais uma vez” dos seus dias, diferente, único e inaugural, Paulo estreou um “Nunca mais?” em sua mente. E uma pequena bolha de dúvida começou a crescer. Paulo começou a questionar a aparente impossibilidade dos sonhos que alimentava diariamente sobre o travesseiro e o “nunca mais” a que estavam destinados começou a perder seu poder de Verdade sobre ele. E se aquele dia fosse o último? - Quem sabe? - Conseguiria conviver com a ideia de que adiar foi simplesmente empurrar suas realizações cada vez mais para o sempre inalcançável "amanhã"? Mas, e se aquele dia fosse o último? E se ele acabasse com aquela vida e se permitisse começar a viver seus sonhos na realidade? Tudo isso era vaga lembrança, mas virou pensamento. Pensamento cisma ser ideia. Ideias fixam, e tênue é a linha entre uma ideia fixa e a Obsessão!
Assim, obsecado pela vontade de sujeitar a realidade aos seus anseios mais profundos, Paulo tirou o relógio do pulso e o soltou displicentemente sobre a mesinha de cabeceira, ao lado de seu fiel despertador, que cronometrava cuidadosamente cada segundo dos cinco minutos restantes para que seu ruído invadisse o quarto e iniciasse o dia – mais uma vez. Nada mais importava para a alma dominada pela força de vontades recolhidas por tanto tempo e, num impulso inconsequente de destamanha libertação, o corpo traduziu a explosão de realizações em um gemido pequeno, num balbucio que ecoou no vazio do quarto resumindo tudo:
 
- Só mais cinco minutinhos...

Um comentário:

Cartas ao Vento disse...

Nossa! Descreve exatamente o que eu vivo... Lindo demais!